Há momentos na vida que são tão espontâneos, improváveis e especiais que todas as palavras não são suficientes para os descrever, a não ser pela escrita do poeta.
Poeta não sou. Mas a poesia sente-se. E foi um momento desses, de pura poesia, o que vivi hoje, pela mão do mero acaso. São sempre os melhores, vá-se lá saber porquê, nesta nossa teimosia de programarmos tudo.
Ao passar pelo larguinho de S. Paulo, no final da Rua da Carreira, com fome e apetite para comer um dos melhores hambúrgueres do mundo (poesia e fome estarão ligados?), um incidente numa passadeira à frente da oficina do Mestre Violeiro Carlos Jorge Pereira Rodrigues levou-me a parar por ali.
O amigo que me esperava para o hamburguer, por mero acaso trocava impressões com este senhor sobre o acontecido. Não há coincidências. Conversa puxa conversa, olho para o interior da loja, que conheço desde miúda mas onde nunca entrara, e dá-me vontade de entrar naquele espaço onde tudo parece desarrumado mas onde, de facto, tudo está no seu lugar. O convite do dono é imediato e aceitamos.
O que então se passou, em mais de uma hora de conversa, é magia pura.
O meu olhar humedeceu-se-me logo pela visão das ferramentas do artesão, tantas delas que se assemelham às que usava meu pai, embora artesão de outras artes (encadernador). Até a banqueta de trabalho, gasta de tanto sentar, mo relembra. Os instrumentos desventrados, em conserto ou em execução, uns velhos, outros novos, uns pequenos ou mínimos, como o machete, outros maiores e graves como o contrabaixo de 1962, talvez o único fabricado na Madeira até aos dias de hoje e ali deposto aos cuidados necessários do violeiro.
Mas a conversa…! Ah… a conversa, essa, guarda-se na memória apenas, é irreprodutível. Podia-se conversar assim horas e horas a fio, uns calados, outros faladores, falando de música e de matemática, outros de nada. É uma vivência única.
Aprendi o que é o tiro de corda de um instrumento musical e o que é que Pitágoras tem a ver com isso. Fiquei a conhecer A música portuguesa a gostar dela própria, o que é um machete e ouvi o seu som aplicado numa preciosidade musical composta por um madeirense de nome Cândido Drumond de Vasconcelos, em 1846, recentemente descoberta e assim interpretada por Roberto Moritz. Chamou-me a atenção o brajão, mistura de braguinha e de rajão inventado e frabricado por Carlos Jorge, que se pode ver na foto ao lado e ouvir neste vídeo. E fomos por aí fora: falou-se de jazz e Maria João, ouviu-se Silvinha Teles, Chico Buarque e Milton Nascimento, passou-se pela inesquecível Voz em The Days of Wine and Roses e aqui já com um quarto elemento dentro da oficina, o Miguel, músico, que, entretanto se juntara a nós, de passagem.
Desconhecidos uns dos outros, a conversa fluía como se aquele lugar fosse a cozinha lá de casa onde, à volta da mesa, se conversa a horas soltas com os amigos de outros tempos.
Foi, sem dúvida, um momento de harmonia, de partilha de emoções e conhecimentos, à volta da música mas em que de vida se falou. Tocou-se instrumentos, tocou-se copos, mas tocou-se sobretudo almas num momento marcante para nós, os visitantes, talvez habitual para o Mestre Violeiro na sua longa vida de artesão e de convívio com todos quantos entram na sua loja, à procura de algo ou à procura de nada. Certamente, todos saem de lá com muito.
Foi um momento de puro prazer e felicidade. E isso, Mestre Violeiro, isso, não tem valor, não se pode quantificar, apenas se pode sentir na tal escala cromática das emoções. Pitágoras deixou de ser para mim um simples teorema.
Obrigada, Carlos Jorge! A sua porta nunca mais me será estranha.